CASA Exposição

MARTINHO COSTA e RUI MACEDO



gonçalo m. tavares


Dois artistas no mesmo espaço, exposição conjunta. Mas aqui muito mais do que isso: dois artistas com o mesmo modelo; um modelo clássico da arte; não é um corpo humano, mas é um corpo, não é natureza, mas também o é, claro. É um modelo aparentemente imóvel, mas com uma outra qualquer nudez paralela à nudez do corpo humano, nudez que vem desse espaço não ocupado, não atulhado com objetos que não o deixam respirar.

O modelo é, pois, a casa da Avenida em Setúbal; dois artistas olham para a mesma casa parada e vêem nela diferentes movimentos. O que é um criador? É alguém que, diante do mesmo, vê outra coisa. Dois artistas, MARTINHO COSTA e RUI MACEDO, diante do mesmo vêem e pensam coisas distintas. 

E de imediato, nos lembramos de Bachelard, e do seu livro “A Poética do Espaço”. A casa, qualquer casa, qualquer boa e forte casa, é, em primeiro lugar, dizia Bachelard, um abrigo do devaneio, um abrigo para a imaginação. Depois de ser abrigo para a chuva e para o frio, depois de ser abrigo e protecção em relação a eventuais animais perigosos ou a inimigos, depois de ser abrigo de tempestades e do céu que por vezes é demasiado negro e incerto, a casa é também abrigo daquilo que é mais alto: a imaginação e a criação. 

Martinho Costa e Rui Macedo estão assim abrigados nesta bela Casa da Avenida; e o olho que está abrigado, protegido, em vez de, com o conforto da protecção, adormecer, fica sim, pelo contrário, mais atento, mais excitado. E é esse olho criativo que os dois artistas lançam sobre esta belíssima casa. A casa que serve de abrigo serve também de objecto de criação, ponto de partida do devaneio. E eis o máximo a que pode ambicionar uma casa: nela não apenas temos a tranquilidade que permite a imaginação livre, mas é ela mesmo o objecto dessa imaginação.

Nas fortíssimas pinturas a óleo de Martinho Costa temos esse traço que vai ao pormenor na cor que cintila, mesmo quando é a sombra a ser retratada; na escada, nos Dois Degraus, na magnífica Poltrona, nas janelas e suas sombras e ângulos – em todas as pinturas há a sensação de que um qualquer animal invisível ali anda, sem parar. E é esse animal invisível que por ali caminha que nos puxa os olhos para o seguirmos. Seguimos o quadro, isto é, fazemos com os olhos um trajecto pela tela, não como quem segue algo parado, mas sim como quem observa um irrequieto organismo vivo. Só o que é vivo se apodera da nossa atenção.

Não se trata apenas de imaginar quem se sentou na poltrona ou no sofá ou de imaginar quem viu os azulejos e quem foi visto, na rua, a partir daquela janela. Nos dois criadores temos isto, que é o essencial:  um sofá, uma planta, pequenos pormenores que sejam, assumem o papel de personagens: as coisas têm uma história - não apenas os objectos, mas também a própria estrutura da casa.

Dois artistas distintos, claro, mas também vizinhos, criadores que se vêem de uma janela próxima. 

As obras de Rui Macedo, por seu turno, nesta Exposição são resultado de diferentes técnicas, de modos distintos do mesmo artista se aproximar do mundo. Temos composições a óleo sobre tela, mas também intervenções a óleo e resina sobre contraplacado escavado - e ainda a mistura destes dois materiais de receção, digamos assim, materiais de recepção do movimento e pensamento do criador. Nas muitas vezes intrigantes obras de Rui Macedo, na potência destas obras, adivinhamos alguns espaços, alguns cantos que são centrais e claros na pintura de Martinho Costa. Mas vemos também, entre muitas outras coisas, nas obras de Rui Macedo, um olhar que do objecto ou modelo, que é a casa da Avenida, avança para outros pontos, ou para outras quase-metáforas, se assim quisermos - como na obra Pintura-Embalagem onde, subitamente, entre diferentes interpretações podemos ler essa ideia central na arte contemporânea de uma obra que é também embalagem; de uma obra que também ela cobre algo, eventualmente uma outra obra. Em suma, aquilo que esconde algo pode ser também essencial (podemos pensar num esconderijo que é tão importante como aquilo que é nele escondido) e, de imediato, nos devaneios a que qualquer pessoa tem direito, vejo a ideia de uma pintura-embalagem que se pode levar de um lado para o outro como quem leva o fragmento de uma casa sem a mutilar, sem sequer a perturbar.

E é também isto que é fortíssimo nestes dois artistas: não roubam a alma de um espaço, nem sequer de um dos seus fragmentos. São obras que partem da Casa da Avenida e acrescentam a essa casa algo mais. Balzac, recorde-se, receava que as fotografias lhe roubassem a alma, e brincou com essa ideia; e num tempo histórico em que fotógrafo e fotografado são quase sempre o mesmo, a pintura, pelo prolongamento do tempo de vigília criativa sobre um pedaço do mundo, ganha uma outra força, uma força necessária.

O trabalho do artista é assim, em parte, introduzir um outro tempo no olhar dos humanos. E é isso que fazem Martinho Costa e Rui Macedo: uma multidão poderá tirar fotografias à casa da avenida, às suas janelas ou degraus, mas um artista não passa pelas coisas para delas levar um recuerdo, escava-as sim. Não tem pressa, tem curiosidade. Por mim, troco cem mil pressas por uma única curiosidade. 

E é isso que aqui vemos nesta exposição: dois criadores, muitas vezes olhando exactamente para o mesmo pormenor - azulejos, ou degraus - fazem duas obras bem distintas, mostrando dois dos muitos caminhos possíveis diante do mesmo modelo. Duas belas curiosidades, portanto, é aquilo que aqui temos.

O que talvez seja ainda mais de realçar, nesta exposição, é a forma como se conseguiu introduzir, de forma delicada, alma nos objectos, pormenores e cantos. Ninguém levou a alma da Casa da Avenida consigo para casa, deixando-a sozinha e puramente material. O notável projecto desta exposição é talvez, então, afinal de contas, também espiritual. No trabalho dos dois artistas, pequenos fragmentos da Casa da Avenida ganharam alma - sofá com alma, degraus com alma, azulejos com alma. 

Todos sabemos que há uma luz que se rouba e suga, deixando tristes as coisas atrás de si, e há depois uma outra luz, completamente distinta, que se doa e se oferece às coisas com que nos cruzamos. Nesta exposição, Martinho Costa e Rui Macedo, nada roubam de imaterial e, pelo contrário, muito acrescentam. 

Um trabalho amoroso, portanto, o que foi feito na Casa da Avenida pelos artistas Martinho Costa e Rui Macedo. Como se cada um deles dissesse: venho dar-te um outro ponto de vista, uma nova luminosidade, um outro brilho; venho, no fundo, dar-te mais tempo, o bem mais precioso, para que demores mais diante de cada canto desta casa. Trata-se, pois, de uma dupla doação: aos visitantes e ao espaço.